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Jean-Noel Fabiani: “A Fabulosa História do Hospital. Da Idade Média aos dias de hoje”

Ganhei este livro de presente, de uma família querida que há anos confia a mim os seus cuidados médicos. Desconheço se eles leram o livro, embora  imagino que não, porque fora o aspecto cultural,  pouco acrescenta, ou melhor, pouco significa para quem não é do ramo. Mas quero entender o recado, talvez o reconhecimento de quem, de algum modo, quer colaborar com esta construção humanista da medicina através de um recurso clássico, que infelizmente tem caído no esquecimento: a história de Medicina.

O homem -no dizer de Ortega- nasce sobre uma história, aproveita-se dos conhecimentos dos seus antecessores, e por isso consegue progredir e salvar as tais circunstâncias que lhe acompanham, para salvar-se ele mesmo. Quer dizer, saber adaptar-se ao presente dirigindo um olhar prudente para o passado. Os animais -o tigre, diz em concreto o filósofo espanhol- nasce com o taxímetro zerado; é o mesmo tigre de milhares de anos atrás, não decola sobre um patamar histórico e por isso sua experiencia vital começa e acaba com ele mesmo. O ensino da História da Medicina está praticamente extinto nas nossas faculdades de hoje, com o que corremos o risco de formar magníficos tigres tecnológicos…..aos que confiamos os nossos cuidados. Uma loucura educativa!

Por isso, a leitura desta obra, escrita por um Professor de Cirurgia Cardiovascular no Hospital Europeu Georges Pompidou que é também Professor de História da Medicina na Universidade Paris Descartes, é uma boa lembrança para os que praticamos a medicina, e nos aventuramos a ensinar esta ciência às gerações futuras. Uma lembrança que nos ajuda a entender que a técnica moderna -de inegáveis conquistas- é precedida pelo trabalho esforçado de muitas gerações, e pela criatividade que foi necessária para superar as ameaças continuas das doenças e epidemias. É também um recurso, apresentado em forma de histórias amenas, para fomentar a humildade, e combater essa postura ridícula de quem por aprender os últimos avanços da ciências se considera o dono da verdade, o salvador do mundo. Atitude, esta, que os tigres tecnológicos possuem em alto grau, fomentada sem dúvida, pelo espírito competitivo da academia onde, paradoxalmente, o paciente passa a ser um detalhe muitas vezes molesto, na trajetória magnífica do médico.

Fabiani inicia seus relatos com as histórias da medicina no seu pais de origem, a França. Conta-nos como no século XII foi instalado o  Hospital Hotel Dieu, para acolher os andarilhos miseráveis que pululavam na Ile de la Cité, e eu não hesitavam em mendigar, roubar e até agredir os burgueses da bela capital. Uma instituição que foi pensada inicialmente para acolher peregrinos foi aos poucos mudando os seus hóspedes: Os doentes e pedintes se tornaram os ‘clientes preferenciais’ dos hospícios e foram substituindo os peregrinos, nesses estabelecimentos, os únicos capazes de acolhê-los.

Um capítulo interessante e desmistificador é o relacionado com  a famosa peste da idade médica. Adverte o autor que todas as epidemias eram designadas com o nome de peste. A peste propriamente dita  era desconhecida na Europa. Veio da Ásia, onde era endêmica, quando os tártaros sitiaram o porto de Caffa, na Crimeia, local que os genoveses utilizavam para fazer negócios. O bacilo da peste e os ratos, tomaram conta de sitiantes (doentes ) e sitiados, sendo que os primeiros catapultavam os cadáveres para espalhar a epidemia entre os que resistiam no sitio. Daí em diante, a Europa importou o bacilo da peste e os ratos…

Mas a varíola foi talvez a campeã das epidemias. E com este nome se incluíam no passado duas doenças completamente distintas. Por um lado, a chamada grande varíola que é a sífilis, conhecido como  o mal espanhol, ou português, enfim, algo que os índios de américa passaram para os espanhóis, que a desconheciam. Parece que foram os marinheiros de Colombo (e os que vieram depois) os encarregados de “importar” a sífilis das colônias para a metrópole. Por outro lado, e em contrapartida, os conquistadores transmitiram aos índios do novo mundo a varíola propriamente dita (a pequena varíola, assim denominada), e que se configura como um elemento definitivo  que dizimou os índios, e influenciou de modo contundente a conquista do império asteca por Cortés. Uma troca de doenças com resultados desastrosos para ambos os lados.

Fabiani nos conta a história do seu compatriota, Ambroise Paré, um barbeiro do século XVI, que inventou a ligadura das artérias antes de amputar os membros, ao invés de praticá-la apenas com ferros ardentes. Praticou esta ligadura utilizando crina de cavalo….Uma criatividade que teve resultados magníficos na sobrevivência dos amputados, mas cujo reconhecimento pela sociedade científica -assim como o de muitos outros inovadores- fez-se esperar. É nota constante nestes relatos que os contemporâneos dos inovadores resistiam às mudanças, talvez pelo divórcio existente entre a escola acadêmica e o hospital, onde os barbeiros tomavam conta junto com  as enfermeiras e religiosas, ficando os acadêmicos na educação teórica, longe da trincheira dos cuidados junto aos pacientes sofredores.

A revolução francesa, no seu furor laico, expulsou as enfermeiras e as religiosas; por outro lado, o antigo regime não deixava os médicos no hospital, que eram confiados aos barbeiros. A situação resultou calamitosa, até que Napoleão fez a tentativa de unir a academia com a prática hospitalar. Uma figura importante deste período é o Dr.  Guillotin. Conhecido pelo seu invento que se considerava  um instrumento humanitário para evitar sofrimentos inúteis e cruéis ( a guilhotina acabava com a vida em um instante), Guillotin foi também um promotor da  vacinação, importou a vacina de Jenner para a varíola, com o apoio de Napoleão.

O invento do estetoscópio por Laennec obedeceu a motivos absolutamente práticos. A paciente que pretendia diagnosticar era sobremaneira obesa e não tinha como escutar o coração pelos métodos convencionais. Lembrou-se de uma brincadeira que tinha observado fazer a crianças pobres: enquanto um garoto raspava uma coluna, um outro grupo escutava do outro extremos as sonoridades magicamente transmitidas.

Relata-se a história de Duchêne, um médico militar que fazendo experimentos com fungos no final do século XIX chegou à conclusão que Fleming apresentaria ao mundo 50 anos depois com a Penicilina. Mas o francês adoeceu, veio a falecer, e ninguém deu sequência à sua pesquisa mesmo tendo sido apresentada como tese e convenientemente defendida. As invejas -naquela época como hoje- são um verdadeiro empecilho para o progresso da ciência. A inveja e a falta de reconhecimento, verdadeira injustiça: valha a história conhecida (foi levada ao cinema Quase Deuses), da cirurgia para a tetralogia de Fallot, as denominadas crianças azuis, creditada a Blalock e Taussig (que a praticaram) mas sob a inspiração e olhar atento de  Vivien Thomas, o auxiliar de laboratório que teve a genial ideia e de quem não houve reconhecimento no Hospital  (John Hopkins), porque não era médico, nem na publicação correspondente do JAMA.

Fabiani inclui algumas histórias do colonialismo do qual afirma não ter vergonha nenhuma (postura hoje politicamente incorreta). E fala-nos dos médicos militares que com recursos miseráveis cuidaram das populações nativas com dedicação e perspicácia. Cita o caso de Yersin, Calmette e de Janot, que pesquisou e combateu a doença do sono, a Tripanossomíase difundida pela mosca Tsé-tsé. Também não tem vergonha das guerras e dos avanços que propiciaram: na batalha de  Solferino liderada por Napoleão III, 40 mil homens pereceram por conta de um socorro muito mal organizado. Um jovem banqueiro da Genebra – Henry Dunant- visitou o campo de batalha  e publicou um livro que fez nascer a Cruz Vermelha.

bSem deixar de citar a Pasteur para ressaltara a importância da observação  “o acaso favorece apenas os espíritos preparados”, Fabiani conclui com um recado que, vindo das histórias que nos conta, tem aplicação prática e direta para os que estamos envolvidos nas batalhas da educação médica: “apego-me à ideia de que o mais importante é fazer aquilo que a gente gosta, sem se preocupar demais com previsões e perspectivas profissionais e, -acima de tudo- não escolher uma especialidade em razão das oportunidades de carreira. Não há nada pior do que ter uma profissão que não traz motivação verdadeira, mesmo que a gente seja nomeado professor-doutor rapidamente”. Um golpe histórico que faz pensar e cutuca os nossos tigres tecnológicos de hoje.

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